Numa manhã de sol de junho de 1966, no início da BR101, a Rio-Santos, um carro branco esquisito alinhou num retão da estrada, ainda em construção, sob o olhar de pouquíssimas testemunhas. Seu nome era Carcará. Na época, a música de mesmo nome, interpretada por Maria Bethânia, fazia sucesso no país, o pássaro que "pega, mata e come, mais coragem do que homem, o bicho que avoa que nem avião". Um libelo político pró-Nordeste, vale a pena ouvir. Naqueles tempos se fazia música de verdade no Brasil.
O Carcará estava na estrada para estabelecer o primeiro recorde brasileiro de velocidade absoluta, que seria homologado segundo padrões internacionais de medição. Atingiu 214,47 km/h empurrado por um motorzinho DKW de 1000 cc e extraordinários 104 hp depois de preparado pelo gênio Miguel Crispim, que varava noites limando as janelas dos blocos para dobrar a potência de motores que saíam de fábrica com 50 hp.
A carroceria de alumínio, batida à mão numa fazenda de Matão, interior de São Paulo, era montada sobre um chassi de Fórmula Júnior feito por Chico Landi e Tony Bianco. Uma categoria que, como tanta coisa por aqui, não vingou. Motor traseiro, volante tão grande, para reduzir os problemas de estabilidade direcional, que precisava ser colocadono cockpit depois do piloto. Anísio Campos e Rino Malzoni assinavam o projeto, batizado de "Arpoador" por seu idealizador, Jorge Lettry, diretor de competições da Vemag.
Foram oito meses de segredo na fábrica, que já estava em processo de fechamento - a DKW seria comprada pela Volkswagen no final de 1966 e sua linha de automóveis, descontinuada no ano seguinte. Oito meses de trabalho, até a manhã de junho na Rio-Santos. O piloto escolhido para bater o recorde, Mário César de Camargo Filho, não sentiu muita confiança naquele bólido e desistiu. Norman Casari, outro piloto da Vemag, topou o desafio e fechou-se na carlinga.
O carro assustava. "A gente se escondia atrás de um Candango quando ele passava, de medo que o Norman fosse perder o controle", conta Crispim. Os pneus escolhidos, Pirelli Cinturato garantidos até 240 km/h, tiveram de ser trocados, na frente, por modelos de rua Stelvio ST17 de uma Vemaguet de outro piloto, Bob Sharp, feitos para rodar no máximo a 120 km/h. Os Cinturato tinham muita aderência e o carro entrava em pêndulo. Era preciso "descolar" a frente do Carcará do asfalto para que ele andasse em linha reta.
Recorde batido, registrado pela revista "Quatro Rodas", o Carcará voltou para a fábrica e dele, depois disso, pouco se sabe. Fez papel de carro de astronauta num filme experimental de um aluno de cinema da USP e depois foi levado à Glaspac, uma empresa que fabricava réplicas em fibra de vidro. Jogado num galpão alugado, lá ficou até que a Glaspac teve de esvaziar a área, chamou o caminhão de lixo e mandou esse capítulo da história do automobilismo brasileiro para um aterro sanitário qualquer.
"A sensação era a de ver um avião decolando", lembra Lettry, o pai do Carcará, que poderia estar comemorando seus 35 anos num museu, mas vai merecer em seu aniversário pouco mais do que estas míseras linhas.
Semana passada, dois títulos mundiais de F-1 conquistados por brasileiros também fizeram aniversários redondos: 20 anos do primeiro de Piquet, dez do último de Senna. Que eles não sejam esquecidos, como esquecido foi o Carcará, pássaro malvado, com bico ponteado como gavião, a águia de lá do meu sertão.
CARCARÁ PEGA E VOA ("Quatro Rodas" número 73, agosto de 1966)
Meio pássaro, meio foguete, "Carcará" é o primeiro carro brasileiro que foi feito para correr muito. E fez seu debut na Barra da Tijuca, Rio, a mais de 212 km/h. Foi o primeiro recorde brasileiro de velocidade. Abriu um novo caminho para o automobilismo brasileiro. Com garbo, graça e muita raça, na alvorada colorida da Guanabara. A prova causou alegria a muitos e espanto a alguns curiosos, pois não é todo dia que se vê carro assim.
(dkv.com.br - Flavio Gomes)
(dkv.com.br - Flavio Gomes)
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