sexta-feira, 20 de março de 2009

Fiat 509 A

A incrível história de uma preciosidade que, aos 82 anos, volta às ruas em estado de 0 km


Você já dirigiu um carro com 82 anos que rodou apenas 2.860 quilômetros? Eu dirigi. E, melhor, segundo o restaurador Ricardo Oppi, eu devo ter sido um dos poucos felizardos a dirigir este Fiat 509A, carroceria Torpedo, de 1927!

A história do carro é saborosa - embora tenha duas versões: o leitor Matheus Gouveia Villas Bôas diz que o carro foi comprado em Pelotas (RS) pelo seu bisavô, José Fernandes de França. Com a crise de 1929, França mudou-se para Sousas, distrito de Campinas, no interior de São Paulo, trazendo o carro de navio. Rodava pouco - daí a baixa quilometragem. Em 1950, o 509A foi vendido para um dos irmãos Tozo, também de Souzas. Daí, foi comprado por alguém de São Paulo. Outra versão diz que França comprou o carro, mas achou que era menor do que esperava. E teria mandado que o guardassem em um barracão e o esqueceu por lá, no meio da sacaria de café. Qualquer que seja a versão, a raridade encontra-se intacta. E se havia algo que tivesse desagradado tanto França como Tozo, na época era, como se diria, "o molejo durinho" do Fiat Torpedo - um incômodo naqueles tempos de estradas mais precárias.

Cintura dura

O problema deste incômodo pode estar nos amortecedores de cinta - uma cinta enrolada ao redor de uma mola em espiral, igual às molas de relógio. O sistema atua como as trenas, cuja fita métrica é forçada ao ser distendida e, ao ser solta volta rapidamente a se enrolar. São amortecedores de uma só ação, ou seja, eles reprimem a distensão do feixe de molas (quando há um buraco e o eixo desce), mas impulsionam o retorno do feixe, em vez de reprimir a ação. O resultado é que a coisa fica meio atrapalhada, principalmente no banco traseiro, sobre o saltitante eixo.

Não basta sentar e dirigir. É preciso aprender a lidar com este carro, já que os comandos são diferentes do que estamos acostumados. Direção do lado direito, acelerador entre os pedais do freio e da embreagem, câmbio de três marchas do tipo universal, só que invertido (comparando a caixa com a do Fusca, a primeira do Fiat está à direita e abaixo, no lugar onde fica a quarta; a segunda onde fica a primeira e a terceira marcha no lugar da segunda).

Mudar marchas com as posições invertidas não é problema, pois o câmbio é seco, sem sincronizador. As trocas são pausadas, feitas com calma e com tempo para pensar à vontade. Já as posições dos pedais é que nos deixa um pouco ressabiados, pois numa reação impensada poderemos acelerar em vez de frear. Se você tiver a chance de guiar um carro assim, dirija descalço para ficar mais ligado no movimento e na sensibilidade dos pés.

Globalização

O velocímetro original funciona direitinho. O levamos aos 50 km/h, ponteiro na vertical, metade da velocidade máxima indicada (a máxima real é de 87 km/h). Neste ritmo, e nem sempre alinhado com a faixa de rolagem por causa da folga da direção, respondo com uma buzinada à provocação de um motoboy - buzina original, sadia aos 82 anos de idade, da Magnetti-Marelli.


O dínamo é da alemã Bosch, os faróis e a luz da placa traseira são da norte-americana General Electric, tudo original e funcionando, e o relógio de corda do painel é O.S., francês. Isso me leva a constatar que já naquele tempo as fábricas buscavam diversas peças pelo mundo afora. A própria Swallow, inglesa que mais tarde mudaria o nome para Jaguar, montou carros sobre a base mecânica, chassi e motor, do 509. Nos anúncios da Swallow a confiabilidade mecânica do modelo, com ênfase na origem Fiat, era sempre ressaltada.

O 509 a rigor é o legítimo ancestral do Uno: é um Fiat feito para ser popular, preço baixo e muitas unidades vendidas. E também porque é o primeiro motor da marca a ter cilindrada menor que 1.000 cm³ (tem 990 cm³). Para conseguir atingir as elevadas metas de venda do modelo, a Fiat fundou seu primeiro banco, o Banco Save, para financiá-lo. Entre os anos 1924 e 1929 foram vendidas 90 mil unidades.

High-treco

O motorzinho de 1 litro era muito avançado para a época. Outra coisa não se poderia esperar do seu projetista, Vittorio Jano, o mesmo que logo em seguida projetaria carros e motores para a Alfa Romeo e depois para a Lancia e Ferrari. Jano é um dos principais gênios da engenharia do automóvel. O motor rende 22 cv/litro, na época em que o motor do Ford T rendia 7 cv/l. Em seguida, o Ford A viria com 12 cv/litro e isso já era considerado um salto e tanto. A boa potência específica provém das altas rotações que o quatro cilindros atingia, 3.800 rpm na potência máxima. Ele foi um dos primeiros motores a ter comando de válvulas no cabeçote.

A refrigeração a água não usa bomba - o sistema é termo-sifão, ou seja, à medida que a água esquenta dentro do bloco, ela sobe e se direciona para a camada superior do radiador. A água que está na parte inferior do radiador, mais fria, é pressionada e entra na parte inferior do bloco, formando assim um inteligente sistema de circulação.

Ele não tem correias. O dínamo está no eixo do virabrequim e a hélice do ventilador está no eixo do comando de válvulas. Quer outra modernidade? O sistema elétrico do 509 é de 12 volts, original. O consagrado Fusca só viria a adotar os mesmos 12 volts 40 anos depois de ter sido lançado.

No centro do volante está a alavanca do avanço da ignição. No pé da coluna de direção, junto ao painel, há duas outras alavancas, uma para o acelerador manual (para o caso de ser necessário dar o arranque na manivela) e a outra para o afogador. No painel está a bomba de "injeção direta": para a primeira partida nas gélidas manhãs européias era necessário injetar gasolina diretamente no carburador, então há uma bomba manual que aciona um êmbolo encarregado de executar a função "high-treco".

No painel ainda vai relógio de corda, botão de buzina, velocímetro, luz de pressão do óleo e luz do funcionamento do dínamo, além de uma pequena alavanca para as luzes de lanterna e faróis. Não tem luz de seta.

Originalidade

A conclusão dessa história é que o fazendeiro acabou rodando só uns 400 quilômetros com o seu pequeno Fiat. O segundo comprador também rodava pouco, de modo que o carro chegou em estado de zero às mãos de um paulistano do bairro de Santana.

Acelerador entre os pedais de freio e da embreagem, suspensão com feixes de mola amortecidos por cinta. Ee manual original, com pouquíssimo uso

O novo comprador tentou emplacar a preciosidade, porém, como a burocracia brasileira é antiga e o 509A não tinha para-choques, não lhe deram a licença. Assim ele rodou, mesmo sem placa, mais uns 2.000 quilômetros. Vê-se que este velhinho simpático andou uns tempos como um fora da lei, até que teria sido abandonado em um barracão. Um belo dia, poucos anos atrás, nas suas andanças, Ricardo Oppi se deparou com o carro e, conhecedor que é, logo sacou que o modelo estava conservadíssimo, íntegro, e que era uma raridade. Rápido, ele já ligou para um investidor oferecendo a preciosidade e este deu ordem de compra.

E então o carro foi desmontado na oficina do Ricardo. Ao abrir o motor, viram que as camisas ainda estavam como novas, com as ranhuras de sua fabricação, e que os dentes da coroa e pinhão do diferencial nem marca de uso tinham. Por essas e outras eles se convenceram que o hodômetro marcava a quilometragem real do carro: incríveis e míseros 2.700 km.

Feixe de luz

O restaurador refez o madeiramento, trocou o estofamento de couro e a lona da capota, cuja armação é original. Do motor, só os anéis dos pistões foram trocados. Nada mais precisou de reparos. Curiosamente, as lonas de freio são originais. Têm 81 anos e se mostram confiáveis. Outra curiosidade é que o freio de mão aciona os quatro tambores. Quando o Ricardo tirou uma pequena chapa do painel, achou a cor exata do carro. E assim, no seu exato tom de bordô, repintou-o.

Ao dirigi-lo no trânsito paulistano, ele parece ser um viajante no tempo que acabou de chegar em um feixe de luz. Pelas ruas ele mostra não entender nada da agitação maluca da realidade atual.

Se o asfalto for liso ele é uma delícia de guiar - esperto e obediente, um típico carro italiano. Nota-se que ele tem o vão livre baixo, ele é todo mais baixo que os carros americanos da época, daí que ele leva pinta de ser bom de curva. Eu evitei forçar a barra porque os pneus, apesar de nada rodados, estão com mais de 50 anos.

Mas não pense que ele é um fracote. O 509S, modelo praticamente igual e só um pouco mais potente (27 cavalos) venceu a prova inaugural do rali Mille Miglia em 1927 e por mais quatro anos seguidos, um tremendo orgulho e festa para os milhares de proprietários do modelo. Está bem que ele venceu só na sua categoria, a que ia de 750 cm³ a 1.100 cm³, mas ele bem que não ficava muito longe dos vencedores na geral. Em 1930 ele fez uma média de 74,4 km/h enquanto o Alfa 6C 1500 SS de Tazio Nuvolari fez média de 100,4 km/h (na C/D 12 falamos dessa memorável corrida). E também vale lembrar que nessa época metade dos competidores desse duro rali ficava pelo caminho. Chegar já era uma vitória, quanto mais vencer.

E assim, depois de uma vida longa e congelada por duas vezes, em setembro de 2007 ele esteve no evento Brazil Collection Cars, realizado no Jockey Club de São Paulo. Na ocasião, tive o prazer de vê-lo sendo dirigido pelo Oppi tendo a bordo o neto e o bisneto do primeiro dono, o segundo e o atual. Momento único, o tempo sendo tão romanticamente violado e remexido. Nossos parabéns, Ricardo! O romance da história do automóvel agradece.

(Super Reportagem do Site: Car and Driver Brasil)

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